Abandono
“Seus
pais foram executados por um nobre por falharem em entregar o mínimo imposto na
talha”, havia dito o ancião do vilarejo dentro da montanha onde vivia. “Àquele
sem destino a vagar desordenado de encontro a morte, uma chance para vencê-la”.
Aos dois anos, o mundo nada mais é do que uma interrogação logo a se tornar
consciência. Uns escolhem se vendar para respirarem aliviados, outros se
apavoram com o que enxergam, alguns lutam para mudar e fracassam, outros
crescem para continuar a girar a roda do destino. No final das contas, todos
rumamos em direção ao esquecimento. Uns viram palavras, outros memórias, alguns
nada além de poeira ao vento.
Dizem os irmãos que a primeira
jornada a Hethaenan é a mais difícil, pois desprovido de propósito, apenas medo
o controla. Comigo, estavam dois outros garotos, mais velhos por um tanto, e no
colo do mentor, uma garotinha a mal andar, quiçá falar. Como haveria de descobrir,
nossos nomes já não eram mais nossos, tornamos apenas números de um único
parente. Mir’athim era seu nome, sua pele pálida como a lua, olhos dourados
como peças de ouro e cabelos longos, presos na altura da nuca, negros como a
noite. Sua feição era impávida, sem tirar os olhos da estrada, guiando a
carroça enquanto distraia a garotinha com sua mão livre.
Esquecimento
“Se
movimente mais, mantenha sua cintura firme, sua espada não é uma arma, mas uma
continuação do seu braço”, mais uma vez Mir’athim passou pelo grupo, com o tom
seco de sempre. Nós quatro treinávamos contra os manequins, enquanto os mais
velhos, filhos de Mir’assan, treinavam uns contra os outros na arena. “A arena
é para os que conquistaram seus medos”, usualmente ao completarem uma década de
treino ou, como se dizia, uma década de nova vida. Lembro-me deste dia quando
Athim Quatro jogou sua espada ao chão, em lágrimas. A garota, agora com seus
sete anos, tinha traços rudes e um corpo mais robusto, uma meia-elfa silvestre.
A punição para tanto era clara, como todos sabiam, mas me interpus entre
Mir’athim e ela inconscientemente, com espada em punhos e um olhar feroz.
“Bravura sem habilidade é apenas suicídio”, disse enquanto me desarmava e, com
uma joelhada no estômago, me lançava ao chão. “Você quer proteger algo precioso?
Não seja fraco. Por que você é fraco? Porque você ainda não tem lugar no
mundo”. Foram duas semanas nos calabouços, com apenas uma refeição por dia, a
ser dividida ou comida pelo mais forte. Nós dividimos todas, para, no final do
encarceramento, ambos estarem famintos.
Ressentimento
Um
garoto em específico me deixava desconcertado, para dizer o mínimo. Ele era um
elfo silvestre do grupo de Mir’assan, porém por razão a vir revelada somente
anos no futuro, ele recebia um tratamento ainda mais duro e suas práticas na
arena eram com os já ordenados, incluindo o nosso líder Mir’din. Isso enfurecia
os demais, contudo éramos proibidos de qualquer comportamento rude em direção
ao mesmo. Todavia, isso não impedia de eventuais troca de farpas e comentários
maldosos, em especial pelo seu cabelo bicolor, preto-e-branco. Quatro e eu,
certa vez, fomos além e, na calada da noite, nos esgueiramos para seu
dormitório particular, o único a possuir tal privilégio. Em intenção inocente
de zombaria, nós o prendemos a cama, amordaçando-o e cortamos seu longo cabelo.
Este foi o mais longo confinamento em que nos metemos, foram dois meses não só
de prisão, mas de punição.
No fim das contas, fomos obrigados a
realizar os estudos na biblioteca com o garoto até seu cabelo voltar a crescer.
Neste período, terminamos por nos tornar bons amigos, especialmente após
entender a razão de seu tratamento especial pelos membros da ordem. O que, em
outro momento, era inveja, rapidamente se transformou em pena do peso a
repousar nos seus ombros.
Tormento
Não
foi muito tarde para os sentimentos infantis se transformarem em algo
diferente, mais intenso. Aos quinze anos, um ano antes da nossa iniciação,
nossa relação passou de simples curiosidade e beijos escondidos para uma troca
carnal intensa. Nós acreditávamos que, se descobertos, seriamos punidos de
forma ainda mais intensa do que quando cortamos o cabelo do agora Mir’abelas, o
avatar da lua sangrenta. Todavia, aparentemente este tipo de relação era comum
e aceitável na ordem, cujo motivo só nos seria entendido no futuro.
Com a aproximação do rito de
renascimento, Quatro demonstrava um constante enjoo e indisposição, o qual era
prontamente desprezado em prol da continuação dos treinos, agora em intensidade
de só terminar na completa exaustão corporal. Treinar vendado, saltando pelos
postes e desviando das pedras arremessadas estavam se tornando cada vez mais
instintivos, ler os movimentos dos meus oponentes um reflexo natural do meu
corpo, minha precisão, seja com arco, besta ou espada, ímpar. Contudo, o
rendimento de Quatro declinava conforme as semanas se passavam e, por fim, o
tão aguardado dia do misterioso ritual de passagem chegou.
A ausência dos novos membros da
ordem só fez sentido naquele instante para mim. Presos pelos membros com
grilhões, todos os filhos de um irmão passavam pelo rito ao mesmo tempo. “Nós
sacrificamos nossos corpos”, proferiu Mir’din enquanto abria longos cortes nas
pernas e braços dos iniciados, derramando uma poção de líquido branco a emitir
luz. Ao adentrar na carne, o ardor era equivalente a ingressar numa fornalha
com chamas até a boca. Os gritos eram sufocados com mordaças. Um e três não
resistiram e sucumbiram ao estresse causado ao corpo. Quase desfalecendo, eu
olhei para o lado e meus olhos se encontraram com os olhos azuis de Quatro, aos
prantos assim como eu. “Nós sacrificamos nossas mentes”, continuou Mir’din,
enquanto nos fazia ingerir uma outra poção, de cor esverdeada e gosto pútrido.
Convulsionando, eu pude reviver todos os instantes da minha vida até aquele
momento e sentir perderem sentido, vê-los cada vez mais distantes até parecerem
insignificantes. “Nós sacrificamos nossos nomes, para sermos esquecidos pelo
mundo”, a voz do mentor ecoava pela minha mente como um sino a badalar a poucos
passos de mim. “Somos as sombras da lua a permitir o sono dos inocentes. Este é
o dever”.
Renascimento
Com
um arfar pesado, minha consciência foi recobrada. Já não sabia quantos dias,
talvez meses, havia se passado. Eu continuava acorrentado à mesa do ritual e o
cheiro de decomposição tomava conta do ambiente, porém meu coração não
demonstrava reação, calmo e centrado. Em cima de cada uma das mesas, um espelho
preso ao teto refletia a realidade. Minha pele, outrora em tonalidade cinza
escura, era pálida e num azulado gélido se aproximando da cor de neve. Meus
olhos ganharam sombras escuras espessas ao seu redor e minha íris agora não
tinham mais cor. Meus longos cabelos lilás agora eram esbranquiçados numa cor
bem próxima a da minha pele. Todavia, o mais aterrorizante eram meus dentes,
agora com caninos similares aos descritos de vampiros e carniceiros, além de
uma tatuagem começando no centro do meu lábio inferior, descendo pelo meu
queixo até o peito, onde se dividia em três arcos para cada lado do meu tronco
e, ao final destas linhas à afinarem-se, os números um, três e quatro estavam
inscritos.
Eu olhei para os demais espelhos e
pude ver os corpos de um e três completamente cadavéricos, como se os músculos
tivessem sido arrancados de seus ossos até só sobrar a pele. Quando olhei para
Quatro, ao meu lado, eu senti um breve aperto no coração e intensa vontade de
vomitar, a passar rapidamente. Ela continuava a mesma em morte como era em
vida. “Aparentemente ela estava grávida e o feto absorveu os efeitos do ritual,
a matando como consequência”, irrompendo o silêncio, Mir’athim lavava suas mãos
no outro lado da sala. “Existe uma saída secreta por aqui, quando eu o soltar
dos grilhões, você vai seguir por ela e enterrar cada um dos seus irmãos. Eles
são parte de você agora. Nunca se esqueça. Depois disto, você irá vagar por
dois anos sozinho e, se sobreviver, retorne à Hethaenan, você receberá um nome
e será oficialmente um de nós”.