Tempestades Silenciosas - A Convicção dos Orgulhosos


Stadt von Gött, em algum momento da década de 1440.
            Eu estava sentado à praça observando as pessoas passarem desatentas ao meu redor. Ao longe, correndo ao redor do tronco de uma árvore, protegido por sua folhagem, estava um garoto de mais ou menos cinco anos brincando com seu animalzinho de estimação. As pessoas parecem ter esquecido o terror que deixamos pra trás na Terra-Mãe, todos tentando viver suas vidas da melhor forma possível. O garoto está entre a quarta ou quinta geração nascida e criada aqui. Stadt von Gött nasceu como um farol de esperanças para os desabrigados e desafortunados. A cidade tomou proporções magnificas em pouquíssimo tempo, como se as pessoas urgissem pela paz trazida por novos horizontes. Nós chegamos como conquistadores, eu sei, eu estava lá nas linhas de frente lutando por um espaço. Os símios que habitavam esse continente não estavam preparados para o que estava pra vir, estava mais do que evidente a nossa necessidade de impor ordem e impulsioná-los na direção do progresso a fim de termos mais chances de vencer aquilo que sozinho não tivemos forças para combater. Todavia, as décadas se passaram, nosso povo se acomodou com a nova moradia encontrada e cresceu tenro, suave demais para os perigos que nos aguardam. Nós passamos a novamente nos preocupar demais com problemas pequenos como bem-estar social e a criar relações com os inferiores que habitam esse pequeno pedaço de terra o qual chamam de Continente. Patético, mas chegando ao final da minha caminhada, eu entendo nossa súplica por paz e estabilidade. Afinal, nós viemos para cá com apenas esperanças e apenas esperança nos resta. Ela se modificou, cresceu nas gerações seguintes a minha de maneira diferente e passaram a almejar diferentes coisas, porém nunca deixou de existir.
            O garoto abraçou seu kiwi finalmente, deixando escapar um enorme sorriso de satisfação. Incapaz de evitar, lágrimas rolaram pelos meus olhos. Foi por isso que eu lutei por tantos anos, foi por isso que realizei tantos testes secretos em virtude de desenvolver a arma perfeita para combater não somente os perigos escondidos nas Terra-Mãe, mas para enfrentar os escondidos nesse Mundo Novo. Pelo sacrifício de uns, esse garoto podia crescer despreocupado, poderia pensar em fazer a cidade um local melhor para seus iguais, sem se preocupar com o que repousa além das fábricas. Nós cometemos muitos erros, eu sei, e eu peço piedade a história, clemencia para ser esquecido se possível. São tempos difíceis, nós fazemos coisas horríveis, contudo necessárias. Stadt von Gött esconde em suas sombras segredos que congelariam a alma do mais destemido dos soldados. O garoto então caiu ao correr e começou a chorar, disparando uma reação imediata do seus pais, que foram em seu auxílio. Nós temos coisas preciosas demais para proteger. Nós temos segredos para os homens e mulheres possam sorrir sem temerem pelo amanhã. O que são alguns milhares em comparação aos milhões que protegemos? O que são sacrifícios se comparados aos sorrisos dos nossos iguais? Diga-me você se eu estou errado ao fazer essas escolhas.

Desencontro


            Era crepúsculo numa pequena vila do interior do reinado de Casterra, um cansado aventureiro caminhava lentamente, encapuzado, em direção a taverna local. Caia uma chuva fina, quase se misturando com a névoa crepuscular que ali formava-se diariamente, com seu gotejar marcando o bater do coração dos homens e mulheres que lá moravam. O viajante carregava em seu cinto uma bainha adornada e bem trabalhada, com envoltos de ferro na entrada da lâmina e onde a mesma tocaria com sua ponta, tal como, pendurada por um barbante negro, estava o símbolo de sua ordem, a cabeça de um corvo com os olhos voltados para o céu. O homem não deveria ter mais de trinta anos, porém sua longa barba castanha fazia-o passar por mais velho e também era um sinal que estava na estrada a bastante tempo, mais do que deveria. Seus olhos acizentados brilhavam por debaixo do capuz que sombreava seu rosto, um olhar firme, porém passava a todos que os fintassem um ar tenebroso de medo. Estava desarmado, por alguma razão, o que não era comum naquela região tomada pela guerra, peste e os abutres que rondavam as desgraças alheias, como bandidos e outros mais. Por fim, suas roupas simples não condiziam com sua bainha, nem sequer trajava uma armadura, e o tecido rasgado de seu blusão por debaixo de um colete de couro demonstrava que havia conhecido batalhas pelo caminho até aquele lugar.
            Num ranger longo e incômodo, a porta da taverna se abriu e nela adentrou o viajante. Ao sentar-se numa mesa vazia próxima a lareira, encostou seus cotovelos a mesa, removeu o capuz deixando à mostra seu longo cabelo de mesma cor que sua barba e com as mãos apoiou a cabeça. O taverneiro sussurou algo para sua filha que trabalhava como garçonete no local e logo a mesma se prontificou a atender o rapaz. Estavam acostumados a receber os mais diversos tipos de viajantes, visto que apesar de pequena, a vila estava a poucos quilômetros da principal estrada comercial da região. Haviam cerca de vinte pessoas no salão principal, talvez mais quatro ou seis na mesa reservada a jogos de azar no fundo, como pode observar o misterioso aventureiro. Logo a filha do taverneiro o abordou, com uma voz suave e gentil perguntou-lhe:

- Deseja beber ou comer alguma coisa, senhor?

- Água, por favor – respondeu, com a voz falha, o homem.

            Prontamente, a moça deu-lhe as costas e seguiu para a cozinha. O silêncio ainda que impossível de se imaginar naquele ambiente o atingiu. Perdeu-se em pensamentos observando a chuva se intensificar, com o olhar fixo para além da janela do local. Do outro lado da rua, uma criança abrigava-se da então repentina tempestade debaixo de uma árvore no centro da praça. A guerra havia deixado diversos órfãos ao longo do reino e poucos pareciam importar-se, quiçá notá-las. Aquela vila não deveria ter mais do que mil habitantes, porém nomes e famílias parecem esconder-se nas sombras do pesadelo de serem os próximos a perderem seus entes queridos.

- O senhor deseja mais alguma coisa? – voltou a repetir a filha do taverneiro, num tom mais elevado ao perceber a distância em pensamento do homem.

            O aventureiro virou seu rosto a ponto de seus olhos encontrassem os da moça e com um sorriso tímido, fraco, respondeu-lhe:

- Esperança.


de 03 de dezembro de 2014.

Monólogo de Arrogância e Ego


            O que há de felicidade para ser conquistada? Talvez orgulho próprio, sucesso social, cultural, emocional, qualquer um que te venderam ainda jovem para você buscar incessantemente, trilhar uma jornada estressante sobre equilibrar um graveto na ponta do seu nariz enquanto se pratica malabarismo e algumas embaixadinhas? Você toma banho e tem uma ideia extraordinária apenas para a mesma ser soterrada pela falta de espaço para genialidade na sua corrida cotidiana de ansiedade, medo, compromisso. O que é genial, afinal? Nada além de alguém que conseguiu quebrar a barreira do socialmente imposto para exercer sua potência de ser, de existir, de contribuir.

            “Minha psiquiatra uma vez falou que grande parte dos pacientes dela estavam envolvidos com arte de alguma forma. E ela queria estudar mais para saber se artistas são mais suscetíveis a doenças como ansiedade e depressão. Nunca havia pensado nisso, mas faz sentido.”. Intelectuais, de maneira geral, são mais “sucetíveis”, mas eu não diria suscetível, até porque escrevi errado primeiro. Acho que um estudo interessante é relacionar essas psicopatologias com esse surgimento de inspiração e genialidade e do que vem primeiro, o ovo ou a galinha. O ovo, evolução nos provou isso, mas enfim. existe uma certa ligação entre comportamento depressivo por conta do grande fardo da intelectualidade e de como você a exerce. Elas, as psicopatologias, são bastante comuns em grandes artistas ou pessoas ligadas a humanidades em geral por conta do peso enorme que é compreender o ser humano em sua essência.
            Eu gostaria de entender a ligação completa entre psicopatologias e o desenvolvimento de habilidades artísticas/cognitivas. Quando eu comecei a me entender com comportamentos isolacionistas, lidar com ansiedade e me ver como um pária da sociedade foi quando eu dei uma completa mudada na minha intelectualidade e isso desenvolveu em mim minha habilidade enquanto escritor. Eu era muito estúpido quando mais jovem, até os 14, 15 anos. Era um dos meninos mais estúpidos do meu grupo e diria até do colégio. Sim, mediocremente sendo uma criança, como todas as demais, tentando me inserir socialmente sem o menor interesse em ciência. Todavia, foi a partir desse desenvolvimento e de me sentir um desajustado, junto a minha criação com leitura e de jogos que houve uma maturação associada aos problemas psiquiátricos. Acredito que a doença talvez tenha impulsionado esse quadro dentro de mim. Eu sempre fui muito criativo, mas eu acho que encontrar o foco dessa criatividade e desenvolvê-la e associá-la a ciência, a habilidade cognitiva como eu tenho hoje.

            Eu não sou modesto, detesto essa falsa humildade vomitada pelas pessoas numa tentativa de serem socialmente agradáveis por subjugar suas capacidades e exaltar suas falhas, porém você sabe disso, mas quem me conhece hoje não consegue imaginar que eu tenha sido alguém estúpido e de pouca capacidade cognitiva ou, se muito, limitada. Isso se desenvolveu em mim no meu ensino médio, eu fui aos poucos me tornando o artista que gostaria de ser e eu acho que a dificuldade de socialização que me causou esses problemas diagnosticados tenha, de alguma forma, dado intensidade a essa transformação. Então, ao invés de um sonho infantil de ser escritor, eu realmente mergulhei na arte até o ponto de ser realmente bom nisso, realmente bom com palavras. Ao invés de ser somente uma pessoa esforçada acumulando conhecimento como um acadêmico comum, eu me tornei um filósofo no sentido primordial da palavra, alguém que é apaixonado por ciência em todas as suas formas, uma pessoa que busca incessantemente respostas para perguntas e mais perguntas. Então eu acredito que as doenças psíquicas não estejam diretamente associadas à artistas e gênios, mas elas se tornam consequência e impulsionam esses talentos brutos a serem lapidados ao extremo, como o carbono, quando colocado sob pressão absurda, torna-se diamante.


de 22 de abril de 2018.

Pecado, Crime e Prisão


            Eu tenho uma confissão a fazer. Talvez não seja muito dizer, talvez para muitos soe ultrajante revelar. A verdade é que eu não entendo muito como consigo me encarar no espelho, as marcas de um pecador em minha pele me castigam por erros os quais não escolhi cometer. É, eu tenho uma confissão a fazer, tenho um pecado mortal a comunicar. Eu tenho tentado ao longo dos tempos conviver com isto, tento procurar nos outros um conforto de saber que não sou o único a carregar este fardo, mas cada dia mais encontro-me mais sozinho com este peso em minhas costas. Como uma rebelião de privilegiados, eu levanto os braços para as armas jamais apontadas para minha cabeça. Como um deus invejoso, eu conjuro maldições ao criador deste pecado capital. Como um homem frágil, é a minha consciência, no espelho, a me julgar, fingindo estar tudo bem e que eu deveria continuar.
             É, eu preciso confessar um crime. Talvez não pareça inconstitucional a priori, mas somente os deuses presos em igrejas sabem julgar o quão hediondo é. Não há perdão para tal ato vil, não há solução senão sucumbir as fibras a me sufocar, bombeando culpa pelas minhas artérias, dificultando minha respiração e engenhando com minha mente a minha punição. Como uma busca incessante para a fonte da juventude, este crime somente é o fim em si mesmo, retroalimentando-se. Como um circo de ferrugens, é uma infração há muito esquecida, andando estonteada pelos cantos, criminalizada pela força bruta de quem comanda. Como se alimentasse a chuva tempestuosa, tão impetuosa, a cair pelos céus sem pedir permissão para existir, ousando desafiar a vontade de quem vive, de quem manda, de quem assobia desapercebido pelo mundo. Como se beijado pelo luar, ele é a cripta de quem sonha e, tocado pelo sol, é o calor entorpecente de quem segue.
             Sim, eu preciso me render. Talvez pareça tolo assim fazê-lo, mas por outros meios já não encontro razões para tirar isto de mim. De verde-e-amarelo, me parece um absurdo ser capaz de sentenciar, seria incapaz até de proferir tamanha ofensa a bandeira. Todavia, vermelha como a rosa a ser admirada, também é o sangue em minhas mãos, também é meus olhos marejados a me inquietar. Eu me coloco a mercê de quem teve estômago de aqui chegar, de todas essas palavras ler e ainda seguir numa curiosidade mórbida de lamber a ferida de um criminoso. Entrego-me a punição onde moro, eu pago o pato por tamanha desavença com a vontade e soberania nacional. Sim, eu admito culpa de amar. Eu admito ser capaz de tamanha atrocidade. Eu admito incapacidade de controlar meu coração. Eu peço perdão ao mundo, mas a minha prisão, esta sim com provas, já foi decretada pela minha falta de juízo. Desculpem-me todos que puderem, mas sim, eu sou capaz de amar novamente.


de 26 de abril de 2018.

Chester Bennington




            Sabe o sabor amargo da ironia quando você respira profundamente e ri, desesperadamente, sabendo que seu salvador morreu das causas que você deveria ter morrido? O que se pode falar quando seu herói vai embora, comete suicídio, se vai pelo mesmo sufocamento conhecido por você? Você sente raiva, a dor rasga-te por dentro, controla cada passo seu e a chuva parece recursar-se a lavar suas feridas. Não, como derramar álcool nelas, a tempestade queima tua pele como fogo vivo, te fazem gritar em silêncio, em latência a consumir cada pensamento teu sem te permitir o alívio da morte.

            Chester Bennington foi meu herói de infância, meu ídolo, me carregou com sua voz em conjunto com seus companheiros de banda. Ele se foi numa tarde chuvosa na minha cidade natal, sem mais, sem menos. Eu gostaria de ter mais palavras para descrevê-lo, eu gostaria de esta ser a minha mais bela crônica. Eu escrevi para sentimentos a me segurarem pela mão, escrevi para minhas cicatrizes, com lágrimas nos olhos, com ódio em cada palavra, mas aqui, para Chester, o que eu posso dizer? O que dizer para uma pessoa que te salvou diversas vezes dos pensamentos nefastos da depressão e da ansiedade? O que dizer ao homem que te salvou de si mesmo quando o mundo parecia dar as costas para mim? Não, foda-se, isto não é sobre mim, sobre minhas experiências de vida e ligação com a banda. Isto é uma carta de adeus para meu ídolo e, para tanto, palavras faltam, meus olhos estão cansados, minha cabeça confusa e caótica, como sempre.

            Eu te amo, Chester, obrigado por ser meu herói enquanto você pode aguentar a vida. Suas palavras me fizeram seguir em frente, não será diferente agora.

Até o meu fim, sempre repetirei: "Adeus."

Viúva de Chester Bennington compartilha foto da família tirada ...

Tempestades Silenciosas - As Consequências do Grande Cataclisma


Os miseráveis

          Escrevo este pequeno excerto de Stadt von Gött, a cidade do inferno (nós amamos a ironia, sim), como todas as demais de um mundo deturpado e largado a própria sorte, no ano de 4716 e no calendário mais usado pelos locais, 1386. Existem sirenes distantes perturbando o silêncio, irrompendo-o violentamente como vísceras rasgadas do abdômen de um miserável ainda vivo. As ruas receberam o milagre da iluminação a gás, uma engenhosidade subterrânea misturando magia, tecnologia e todo tipo de merda que as grandes industrias vendem como o futuro para nós desgraçados presos ao passado. Não existe um dia dolente em Stadt von Gött sem um punhado de chuva, neblina com um pouco de sorte, o típico buraco de merda para vagabundos chafurdarem na lama de suas vidas, gritando em silêncio a liberdade de escolher entre as ilusões dispostas de si. “Um” é livre para ser um escravo numa indústria metalúrgica, grande orgulho patriótico. Este trabalha para um bem maior, a estupenda, magnífica, invencível, indestrutível e... eu esqueci os demais adjetivos idiotas da força naval dos que se chama de shadar-kais. Os renegados por Kai. Nós nos orgulhamos deste desprezo.
            Os orelhas-redondas nos chamam de metahumanos, nós retribuímos o favor com nossos próprios jargões preconceituosos para todas as demais raças. Os selvagens dos arquipélagos do note, orcae, mais os disciplinados guerreiros de todas as raças e etnias distribuídas por esta terra em decadência, mas parecem repudiar os avanços científicos como abominações a depredar os velhos costumes. “Os pilares do mundo estão diante de nós, nós somos seus guardiões”. Blá blá blá, pegue seus dois metros de musculatura possante contra minha besta de repetição e regue sua terra sagrada com sangue. 
          Mais ao sul, estão os que se chamam de humanos, alguma variação de nossa palavra hominidae, eu acredito. São como coelhos, uma verdadeira chaga neste mundo. Se reproduzem com uma facilidade inacreditável. Dentro de tudo os que nos une a um único tronco biológico de espécies, acho que eles são os que estão mais próximos de suas emoções. São passionais, arrogantes, ambiciosos, porém tão fáceis de manipular como tábulas rasas.
          Mudando de direção um tanto, no que restou do Leste do Staat der Weißes Land, nós temos uma espécie de transição, talvez, são muito mais descritíveis pela sua peculiar crença e religião. Eles são descendentes de elfos e humanos que a muito se miscigenaram. O mais próximo de descrevê-los seriam o corpo delgado semelhante aos élficos, porém com uma musculatura muito mais evidente e definida e tons de pele escuras, indo de um marrom bronzeado até um negro próximo de obsidiana. Com longos e finos narizes, seus olhos costumam ser pequenos e apertados, mas diferente dos orientais. Diferente de seus antepassados elfos, a mistura com a raça humana os proporcionou barbas cheias, talvez mais cheias até do que os humanos ditos puros. Por causa da sua religião monoteísta e extremamente fechada, eles chamam os homens de Ahura, senhor ou poderoso, enquanto as matriarcas são chamadas de Mazda, sabedoria em tradução livre. Eles vivem sob um governo matriarcal e uma sociedade patriarcal, contraditória por natureza, mas aparenta funcionar.
          Em contato com os residentes do grande deserto conhecido como Mar de Fogo, estão os isolados elfos da Cidade do Sonhar. Sim, eles residem em apenas uma ostentuosa e quase divina megalópole tecnomagica no meio da Floresta de Muitos Nomes. Usualmente, os residentes a chamam de Coração da Mãe Natureza. Outras raças, mais ligadas à ciência não ao misticismo, a costumam chamar recentemente de A Grande Barreira, em alusão aos conflitos envolvendo os shadar-kais do sul após a quebra do pacto de não-agressão, vigente no período do Dragão do Norte. Em questão física, os elfos não estão muito diferentes dos shadar-kais invasores, provavelmente estão mais próximos dos mesmos na cadeia evolutiva. São, porém, mais altos, sua aptidão física é limitada e seus corpos tendem, se não cedidos as opulências da elite élfica, porém suas ligações com a natureza os tornam exímios guerreiros corpo-a-corpo, com velocidades sobrehumanas. Estes guerreiros élficos, temidos em todo Mundo Novo e aclamados para se tornarem caçadores de monstros, são monges e druidas, onde o primeiro usa a energia natural (balanço entre o arcano e o divino) presente no mundo em seu próprio corpo, chamando-o de chakra e tornam-se assim armas vivas, sem necessidade de ferro, aço ou qualquer forma de equipamento. Já os druidas não internalizam suas energias, mas agem livremente através da percepção da mesma, sendo quase impossível pegá-los de surpresa. Alguns estão em uma sintonia tão perfeita que seus corpos humanos perdem o sentido, muitos lutam incorporando criaturas das florestas.

Fim do relatório de campo.

Ehre sei dem Neue Staat der Hoffnung,
Oberst Wihelm Reinstarek



            Deixe-me falar um pouco sobre fé, por favor. A porta está trancada esta noite, como todas as outras, porém, em silêncio, eu repouso minha cabeça em desolação esperando uma resposta tua. Eu arrasto minhas mãos tímidas ensanguentadas enquanto, aos sussuros, entrego teu nome ao vento, numa esperança vã de chegar até você. Todavia, minha querida, não existe razão para harmonia aqui, nem tampouco aquele tom jocoso de misericórdia. Não, aos tolos covardes o bastante para nunca baterem a porta, cabe apenas o calar eterno do esquecimento. Eu acredito que você não saiba, talvez nem sequer se importe, mas eu não costumo falar de fé, especialmente para aqueles perdidos como eu por entre os caminhos inconscistentes da vida. Eu não tenho nada além de palavras para te oferecer, nunca tive e é bastante provável que isto seja tudo de mim para o mundo, porém é em sincero desapego que ofereço tudo o que me restou para, se possível, colocar um sorriso bobo no teu rosto tão manchado de cicatrizes injustas.
            O que é a beleza, minha querida, senão a frágil disposição do sereno navegando em desespero pelas águas das nossas lágrimas? A felicidade nada mais é do que o apego angustiante à todas as nossas espectativas. A crueldade de querer, muitas vezes, nos cega daquilo que pode nos trazer paz e conforto. Para cada estrada pavimentada de ouro, os bêbados caminham desatentamente procurando o arco-íris no final da jornada sem admirar a graça dos palhaços à tentarem ser mais do que um sorriso falso. E você grita para aqueles que se esforçam o suficiente para te ouvir: “Devolvam-me minha inocência, pois eu desejo sonhar novamente!”. Eu acredito nunca ter crescido o bastante para abandonar meu playground e quando o crepúsculo toca o horizonte, é o teu sorriso que gostaria de ver iluminar meus passos infantis num mundo violento o suficiente para anoitecer. Quando as cantigas não bastarem mais para te fazer adormecer, eu gostaria de poder te dar minhas asas quebradas para te levar para um lugar longe de todos os teus pesadelos.
            Sim, eu tenho consciência de estar falando sozinho, não preciso fantasiar tolamente sobre meus devaneios absurdos do pouco que me sobrou te alcançar. Eu barganhei com meu destino, o dobrei e o fiz meu, devendo ao diabo o preço da minha fé. Dosando com calma algumas poucas mentiras para aliviar a dor, eu ainda escuto a tristeza chamar meu nome. Opaco como as chamas dentro dos teus olhos, eu lanço mais um sorriso falso despretencioso. Ah, a minha armadura quebrada, tão patética, está jogada em um canto qualquer do meu quarto, enquanto eu finjo mais uma vez este papel ridículo de herói imbatível. É apenas um jogo. É apenas um jogo onde evito passos em falso. É apenas um jogo onde eu já não me importo com meus fracassos. É apenas um jogo que me destrói toda vez que eu te vejo perder. É apenas mais um tiro no escuro, apenas mais um golpe cego em direção ao vazio.
            Eu comecei mais um sarcasmo e já não sei se ele me envolve ou se é sobre mim. “Se a via crucis virou circo, eu estou aqui”.

Data original de escrita: Set. 2015.

Linha Tênue Entre Juventude e Loucura



Ei, você sabe que eu fiz tudo por você
Eu me desdobrei, me fiz presente
Para no final, você não me querer?
Tudo bem, eu adoro o jeito que você mente

Chega de jogos e charme
Levante-se, decida-se e vá vencer
Vamos, escolha seu caminho e se arme
Eu acuso você do crime de viver

Fora de todos os corações
Eu sei que você apenas deseja aproveitar
Juventude vive de pequenas paixões
“É para sempre enquanto durar”

Há quem diga que não é loucura
Ser jovem e aprender a ter liberdade
As correntes da vida são um mal sem cura
Aproveite enquanto há arbitrariedade

Antologia "O Mundo de Tempestades Silenciosas" - Mir’nadas



Abandono

            “Seus pais foram executados por um nobre por falharem em entregar o mínimo imposto na talha”, havia dito o ancião do vilarejo dentro da montanha onde vivia. “Àquele sem destino a vagar desordenado de encontro a morte, uma chance para vencê-la”. Aos dois anos, o mundo nada mais é do que uma interrogação logo a se tornar consciência. Uns escolhem se vendar para respirarem aliviados, outros se apavoram com o que enxergam, alguns lutam para mudar e fracassam, outros crescem para continuar a girar a roda do destino. No final das contas, todos rumamos em direção ao esquecimento. Uns viram palavras, outros memórias, alguns nada além de poeira ao vento.
            Dizem os irmãos que a primeira jornada a Hethaenan é a mais difícil, pois desprovido de propósito, apenas medo o controla. Comigo, estavam dois outros garotos, mais velhos por um tanto, e no colo do mentor, uma garotinha a mal andar, quiçá falar. Como haveria de descobrir, nossos nomes já não eram mais nossos, tornamos apenas números de um único parente. Mir’athim era seu nome, sua pele pálida como a lua, olhos dourados como peças de ouro e cabelos longos, presos na altura da nuca, negros como a noite. Sua feição era impávida, sem tirar os olhos da estrada, guiando a carroça enquanto distraia a garotinha com sua mão livre.

Esquecimento

            “Se movimente mais, mantenha sua cintura firme, sua espada não é uma arma, mas uma continuação do seu braço”, mais uma vez Mir’athim passou pelo grupo, com o tom seco de sempre. Nós quatro treinávamos contra os manequins, enquanto os mais velhos, filhos de Mir’assan, treinavam uns contra os outros na arena. “A arena é para os que conquistaram seus medos”, usualmente ao completarem uma década de treino ou, como se dizia, uma década de nova vida. Lembro-me deste dia quando Athim Quatro jogou sua espada ao chão, em lágrimas. A garota, agora com seus sete anos, tinha traços rudes e um corpo mais robusto, uma meia-elfa silvestre. A punição para tanto era clara, como todos sabiam, mas me interpus entre Mir’athim e ela inconscientemente, com espada em punhos e um olhar feroz. “Bravura sem habilidade é apenas suicídio”, disse enquanto me desarmava e, com uma joelhada no estômago, me lançava ao chão. “Você quer proteger algo precioso? Não seja fraco. Por que você é fraco? Porque você ainda não tem lugar no mundo”. Foram duas semanas nos calabouços, com apenas uma refeição por dia, a ser dividida ou comida pelo mais forte. Nós dividimos todas, para, no final do encarceramento, ambos estarem famintos.

Ressentimento

            Um garoto em específico me deixava desconcertado, para dizer o mínimo. Ele era um elfo silvestre do grupo de Mir’assan, porém por razão a vir revelada somente anos no futuro, ele recebia um tratamento ainda mais duro e suas práticas na arena eram com os já ordenados, incluindo o nosso líder Mir’din. Isso enfurecia os demais, contudo éramos proibidos de qualquer comportamento rude em direção ao mesmo. Todavia, isso não impedia de eventuais troca de farpas e comentários maldosos, em especial pelo seu cabelo bicolor, preto-e-branco. Quatro e eu, certa vez, fomos além e, na calada da noite, nos esgueiramos para seu dormitório particular, o único a possuir tal privilégio. Em intenção inocente de zombaria, nós o prendemos a cama, amordaçando-o e cortamos seu longo cabelo. Este foi o mais longo confinamento em que nos metemos, foram dois meses não só de prisão, mas de punição.
            No fim das contas, fomos obrigados a realizar os estudos na biblioteca com o garoto até seu cabelo voltar a crescer. Neste período, terminamos por nos tornar bons amigos, especialmente após entender a razão de seu tratamento especial pelos membros da ordem. O que, em outro momento, era inveja, rapidamente se transformou em pena do peso a repousar nos seus ombros.

Tormento

            Não foi muito tarde para os sentimentos infantis se transformarem em algo diferente, mais intenso. Aos quinze anos, um ano antes da nossa iniciação, nossa relação passou de simples curiosidade e beijos escondidos para uma troca carnal intensa. Nós acreditávamos que, se descobertos, seriamos punidos de forma ainda mais intensa do que quando cortamos o cabelo do agora Mir’abelas, o avatar da lua sangrenta. Todavia, aparentemente este tipo de relação era comum e aceitável na ordem, cujo motivo só nos seria entendido no futuro.
            Com a aproximação do rito de renascimento, Quatro demonstrava um constante enjoo e indisposição, o qual era prontamente desprezado em prol da continuação dos treinos, agora em intensidade de só terminar na completa exaustão corporal. Treinar vendado, saltando pelos postes e desviando das pedras arremessadas estavam se tornando cada vez mais instintivos, ler os movimentos dos meus oponentes um reflexo natural do meu corpo, minha precisão, seja com arco, besta ou espada, ímpar. Contudo, o rendimento de Quatro declinava conforme as semanas se passavam e, por fim, o tão aguardado dia do misterioso ritual de passagem chegou.
            A ausência dos novos membros da ordem só fez sentido naquele instante para mim. Presos pelos membros com grilhões, todos os filhos de um irmão passavam pelo rito ao mesmo tempo. “Nós sacrificamos nossos corpos”, proferiu Mir’din enquanto abria longos cortes nas pernas e braços dos iniciados, derramando uma poção de líquido branco a emitir luz. Ao adentrar na carne, o ardor era equivalente a ingressar numa fornalha com chamas até a boca. Os gritos eram sufocados com mordaças. Um e três não resistiram e sucumbiram ao estresse causado ao corpo. Quase desfalecendo, eu olhei para o lado e meus olhos se encontraram com os olhos azuis de Quatro, aos prantos assim como eu. “Nós sacrificamos nossas mentes”, continuou Mir’din, enquanto nos fazia ingerir uma outra poção, de cor esverdeada e gosto pútrido. Convulsionando, eu pude reviver todos os instantes da minha vida até aquele momento e sentir perderem sentido, vê-los cada vez mais distantes até parecerem insignificantes. “Nós sacrificamos nossos nomes, para sermos esquecidos pelo mundo”, a voz do mentor ecoava pela minha mente como um sino a badalar a poucos passos de mim. “Somos as sombras da lua a permitir o sono dos inocentes. Este é o dever”.

Renascimento

            Com um arfar pesado, minha consciência foi recobrada. Já não sabia quantos dias, talvez meses, havia se passado. Eu continuava acorrentado à mesa do ritual e o cheiro de decomposição tomava conta do ambiente, porém meu coração não demonstrava reação, calmo e centrado. Em cima de cada uma das mesas, um espelho preso ao teto refletia a realidade. Minha pele, outrora em tonalidade cinza escura, era pálida e num azulado gélido se aproximando da cor de neve. Meus olhos ganharam sombras escuras espessas ao seu redor e minha íris agora não tinham mais cor. Meus longos cabelos lilás agora eram esbranquiçados numa cor bem próxima a da minha pele. Todavia, o mais aterrorizante eram meus dentes, agora com caninos similares aos descritos de vampiros e carniceiros, além de uma tatuagem começando no centro do meu lábio inferior, descendo pelo meu queixo até o peito, onde se dividia em três arcos para cada lado do meu tronco e, ao final destas linhas à afinarem-se, os números um, três e quatro estavam inscritos.
            Eu olhei para os demais espelhos e pude ver os corpos de um e três completamente cadavéricos, como se os músculos tivessem sido arrancados de seus ossos até só sobrar a pele. Quando olhei para Quatro, ao meu lado, eu senti um breve aperto no coração e intensa vontade de vomitar, a passar rapidamente. Ela continuava a mesma em morte como era em vida. “Aparentemente ela estava grávida e o feto absorveu os efeitos do ritual, a matando como consequência”, irrompendo o silêncio, Mir’athim lavava suas mãos no outro lado da sala. “Existe uma saída secreta por aqui, quando eu o soltar dos grilhões, você vai seguir por ela e enterrar cada um dos seus irmãos. Eles são parte de você agora. Nunca se esqueça. Depois disto, você irá vagar por dois anos sozinho e, se sobreviver, retorne à Hethaenan, você receberá um nome e será oficialmente um de nós”.

Antologia "O Mundo de Tempestades Silenciosas" - A Ordem da Lua Sangrenta


Ruínas de Hethaenan, localização desconhecida.
            Em um vale sereno perdida em meio a uma cordilheira, árvores espaçadas dão vida ao local em conjunto com o gramado verdejante. Uma lagoa beija suavemente o sopé de uma das montanhas e ali repousa Hethaenan, memórias de outrora gloriosa fortaleza, agora ruínas a serem reconquistadas pela vegetação local. Seu portão, em arco de pedras talhadas e bem trabalhadas, com grades enferrujadas, agora se recusa a ofertar abrigo e proteção, constantemente fechado por falta de manutenção. A muralha se estende quase um quilômetro, antes de, em seu ponto mais a leste, dobrar e seguir de encontro a montanha, enquanto à oeste seu término abrupto arqueia sobre o corpo d’água, até novamente se fazer inteira, penetrando parcialmente as partes rasas da lagoa e seguindo, também, para se completar na montanha. Suas torres de vigia, apenas vislumbres de um passado perdido, assemelham-se ao estado da própria muralha. Para dentro de seu muro decadente, um enorme pátio de chão de pedras abriga um simplório estábulo, uma arena de terra cercada, alguns objetos para treinamento como manequins armadurados, alvos para prática de arco-e-flecha e diversos objetos mais. Aproximando-se da construção principal, um par de escadas envolvem um terraço com uma estátua em ruínas com uma placa onde se lê: “O escudo do nosso povo é forte, sua espada é precisa e seu sangue derramado jamais esquecido”.
          A construção principal, um castelete de mesmo material da muralha com portões destoantes de sua idade, sinalizando ter sido feito por novos habitantes da localidade, está em condições ainda mais deploráveis. Um vasto e alto saguão, outrora uma sala do trono, agora transformado em um refeitório com cozinha, um espaço destinado a entretenimento e diversas lareiras. Em uma de suas paredes decadentes, diversos troféus de cabeças, dos mais variados monstros, estão expostos, todas com placas dos triunfantes caçadores. No lado oposto, armas, crânios e outras partes a representar os monstros ditos civilizados se fazem presente. Ao centro do saguão, numa elevação, está um trono aos pedaços e, fincado entre seus destroços, um estandarte preto com bordas douradas e uma meia-lua minguante ao seu centro. Por detrás, duas largas escadarias se dividem, onde a direita ascende em direção ao andar superior e a da esquerda ingressa ao chão em direção as celas do calabouço.
          O segundo piso do castelo possui dezenas de pequenos cômodos, em especial uma vasta biblioteca e uma equipada área laboratorial de alquimia. Os demais são, em sua maioria, quartos comunitários desocupados, banheiros e um terraço enorme circundando todos os ambientes. Os quartos possuem em torno de cinco beliches cada, com um baú ao pé de cada um destes e uma lareira. Os banheiros, três no total, possuem banheiras de madeira e um balde para aliviar as necessidades. Contudo, o espaço de todos os cômodos não coincide com o que deveria ser a área completa. Isto é por um cômodo secreto, de acesso pela livraria e pelo laboratório, sem teto, com um grandioso altar em pedra, prata e pedras preciosas com uma estátua de meia lua crescente e uma menor no meio repousando majestosamente. Aos pés do altar, diversos amuletos, orbes e cristais emitindo luzes brancas intensas. Inscrito em uma língua antiga, lê-se no altar: “A essência da vida retorna à noite para se fazer dia novamente”.
          Já no subterrâneo, onde o antigo calabouço se localizava, a lamúria de outrora se mistura com os horrores praticados pelo presente em nome de um bem maior. Para além das máquinas de tortura e de aprisionamento, o cômodo mais sinistro é o do rito de passagem. Com uma mesa de madeira grossa e densa, com grilhões para os membros, é neste lugar onde jovens se transformam em protetores através de rituais envolvendo sangue, arcana e misturas alquímicas a modificar o corpo do iniciado, porém nem todos são aqueles que saem daquela sala com vida. Apenas os mais preparados, com maior resiliência, escapam com vida, mas não sem cicatrizes eternas em seus corpos e mentes. Todavia, não sem antes carregarem consigo o peso de todos os que passaram e passarão por ali, como as palavras proferidas antes do início do ritual: “Nós sacrificamos nossos corpos, nossas mentes, nossos nomes, para sermos esquecidos pelo mundo. Somos as sombras da lua a permitir o sono dos inocentes. Este é o dever”.

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